terça-feira, 12 de novembro de 2013

"A carne viva"











Entre as muitas crônicas do Affonso Romano De Sant’Anna, a que postarei abaixo parece  homenagear meu querido amigo “virtual”, Vladimir Baptista, um brilhante professor  de grego e ferrenho defensor dos animais. É o amigo que chacoalha a nossa consciência, a cada instante , com suas postagens  de indignação a respeito do” matar e fazer sofrer” os animais ,para nosso bel prazer. Sabe tudo sobre os animaizinhos principalmente os gatos. Se alguém quiser tirar alguma dúvida sobre gatos, disque Help Vlad!

                                                         “A CARNE VIVA”

Hipocritamente durmo na madrugada enquanto bois são abatidos nos frigoríficos da manhã.
Durmo hipocritamente sem ver o sangue que escorre pelas calhas da noite e começam a subir,
Ondeando, pelos pés de minha cama. Durmo sem ver o olhar do boi no matadouro. O olhar. O berro. A morte.
Tapo os ouvidos, mas os grunhidos dos porcos rasgam o pelo da noite. O sangue espirra do
Curral da madrugada e homens ávidos vão desenrolando as tripas da fera, que estrebucha,
Para convertê-las em linguiça que hipócrita e porcamente me serão servidas.
Uma vez contaram-me como se matam gansos na França. Os bois, a gente pode pensar,
Levam aquela pancada súbita na cabeça e desmontam sua carcaça no ladrilho. Mas os
Gansos são cevados, como não se cevam os frangos.
Os frangos sabem que vão morrer nos campos de concentração vigiados pela SS dos
Frigoríficos. Mas os gansos conhecem o martirológio dos santos e penitentes.
Começam a engordá-los. Ou, pior: cevá-los forçadamente. Os frangos, sabemos, são alimentados também artificiosamente; deixam aquelas luzes acesas noite e dia, e eles comendo, bicando, comendo, bicando os segundos, bicando os minutos numa engorda rápida e lucrosa.
Mas os gansos são agarrados à força. E então começa-se, por um funil ou moedor para
que a comida já vá direto para dentro, chegue mais rapidamente ao fígado, que em forma de patê colocarei em minha mesa no fim de semana na casa de campo. Mas não é sobre gansos que estou escrevendo especificamente, e sim, sobre a carne que para mim se prepara na escuridão hipócrita de minha fome.
Na infância de todo mundo (pelo menos no interior e antigamente) havia sempre uma galinha que alguém começou a matar na cozinha. E foi-se cortar o pescoço dela, tendo as asas presas sob os pés contra o ladrilho, e, de repente, ela se soltou. Se soltou e saiu com o pescoço pendurado jogando sangue pelas paredes até fanar-se no degrau para o quintal.
Há quem vá aos restaurantes especializados em peixes, porque quer ver o peixe vivo, o peixe que vai escolher no aquário. E aponta-se com o dedo, “ quero aquele ali”, e se senta à mesa, enquanto na cozinha jogam lagostas vivas na água fervente e champanha espuma sua indiferença na taça dos reis.
Carne deveria dar em árvore.
Mas um dia me mostraram uma árvore que sangra.
Meu caseiro espetava-lhe um prego, arame ou qualquer instrumento torturante, e lá vinha aquela gota vermelha.
Um dia passei sob ela. Suas folhas choravam vermelho sobre mim. Não era chuva radioativa, eram lágrimas de uma árvore em carne viva.
E não faz muito descobriram que os vegetais também são seres humanos. Já ouviram tomate chorar e laranjas terem vertigem  quando colheram uma ao seu lado para a lâmna da morte.
Carne e legumes deveriam cair como maná do céu.
Aquele maná misterioso que choveu sobre o povo perdido no deserto. Pelo menos era assim que antigamente se pensava: a vida alheia era para nos alimentar. Naturalmente. Não hipocritamente, como hoje.
Contudo, a esta hora os açougues na França estão exibindo dependurados em suas portas
Peludos javalis, aves de penas enormes e coloridas, como se tivessem saído de um quadro de natureza-morta dessangrando nosso zoológico sadismo.
E a esta hora estão no Brasil pegando leitõezinhos que, assados, ainda ganham sobre o nariz uma rodela de laranja e aqui e ali azeitonas e outros adereços. E quando postos sobre a mesa nos olham, tão sorridentes e cínicos como nós.
Se mexermos na sopeira com certa convicção, pernas de galinha virão  boiando, num cemitério aquático de dar água no céu da boca dos mais místicos. Os mais sedentos ,é claro, poderão beber o sangue do frango ao molho pardo, já que não basta o sangue condensado nos chouriços.
Hipocritamente me assento numa churrascaria. Bebo um chope junto com a caipirinha e peço voluptuosamente uma picanha. Por que não um churrasco completo? Sim, aceito. E lá vêm os cadáveres eufóricos correndo para o meu prato: tomo a faca, empunho o garfo como um guerreiro tártaro. E como. E rumino. E mastigo. E gosto. O sangue da vítima vai se misturando ao meu civilizadamente. Barbaramente.

O pior antropófago é o que tem remorsos de sobremesa. Eu. E você. Meu hipócrita leitor, meu semelhante, meu irmão.                

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