Entre as muitas crônicas do Affonso Romano De Sant’Anna, a
que postarei abaixo parece homenagear
meu querido amigo “virtual”, Vladimir Baptista, um brilhante professor de grego e ferrenho defensor dos animais. É o
amigo que chacoalha a nossa consciência, a cada instante , com suas postagens de indignação a respeito do” matar e fazer
sofrer” os animais ,para nosso bel prazer. Sabe tudo sobre os animaizinhos
principalmente os gatos. Se alguém quiser tirar alguma dúvida sobre gatos,
disque Help Vlad!
“A CARNE VIVA”
Hipocritamente durmo na madrugada enquanto bois são abatidos
nos frigoríficos da manhã.
Durmo hipocritamente sem ver o sangue que escorre pelas
calhas da noite e começam a subir,
Ondeando, pelos pés de minha cama. Durmo sem ver o olhar do
boi no matadouro. O olhar. O berro. A morte.
Tapo os ouvidos, mas os grunhidos dos porcos rasgam o pelo da
noite. O sangue espirra do
Curral da madrugada e homens ávidos vão desenrolando as
tripas da fera, que estrebucha,
Para convertê-las em linguiça que hipócrita e porcamente me
serão servidas.
Uma vez contaram-me como se matam gansos na França. Os bois,
a gente pode pensar,
Levam aquela pancada súbita na cabeça e desmontam sua
carcaça no ladrilho. Mas os
Gansos são cevados, como não se cevam os frangos.
Os frangos sabem que vão morrer nos campos de concentração vigiados pela SS dos
Os frangos sabem que vão morrer nos campos de concentração vigiados pela SS dos
Frigoríficos. Mas os gansos conhecem o martirológio dos
santos e penitentes.
Começam a engordá-los. Ou, pior: cevá-los forçadamente. Os
frangos, sabemos, são alimentados também artificiosamente; deixam aquelas luzes
acesas noite e dia, e eles comendo, bicando, comendo, bicando os segundos,
bicando os minutos numa engorda rápida e lucrosa.
Mas os gansos são agarrados à força. E então começa-se, por
um funil ou moedor para
que a comida já vá direto para dentro, chegue mais
rapidamente ao fígado, que em forma de patê colocarei em minha mesa no fim de
semana na casa de campo. Mas não é sobre gansos que estou escrevendo
especificamente, e sim, sobre a carne que para mim se prepara na escuridão
hipócrita de minha fome.
Na infância de todo mundo (pelo menos no interior e
antigamente) havia sempre uma galinha que alguém começou a matar na cozinha. E
foi-se cortar o pescoço dela, tendo as asas presas sob os pés contra o
ladrilho, e, de repente, ela se soltou. Se soltou e saiu com o pescoço
pendurado jogando sangue pelas paredes até fanar-se no degrau para o quintal.
Há quem vá aos restaurantes especializados em peixes, porque
quer ver o peixe vivo, o peixe que vai escolher no aquário. E aponta-se com o
dedo, “ quero aquele ali”, e se senta à mesa, enquanto na cozinha jogam
lagostas vivas na água fervente e champanha espuma sua indiferença na taça dos
reis.
Carne deveria dar em árvore.
Mas um dia me mostraram uma árvore que sangra.
Meu caseiro espetava-lhe um prego, arame ou qualquer
instrumento torturante, e lá vinha aquela gota vermelha.
Um dia passei sob ela. Suas folhas choravam vermelho sobre
mim. Não era chuva radioativa, eram lágrimas de uma árvore em carne viva.
E não faz muito descobriram que os vegetais também são seres
humanos. Já ouviram tomate chorar e laranjas terem vertigem quando colheram uma ao seu lado para a lâmna
da morte.
Carne e legumes deveriam cair como maná do céu.
Aquele maná misterioso que choveu sobre o povo perdido no
deserto. Pelo menos era assim que antigamente se pensava: a vida alheia era
para nos alimentar. Naturalmente. Não hipocritamente, como hoje.
Contudo, a esta hora os açougues na França estão exibindo
dependurados em suas portas
Peludos javalis, aves de penas enormes e coloridas, como se
tivessem saído de um quadro de natureza-morta dessangrando nosso zoológico
sadismo.
E a esta hora estão no Brasil pegando leitõezinhos que,
assados, ainda ganham sobre o nariz uma rodela de laranja e aqui e ali
azeitonas e outros adereços. E quando postos sobre a mesa nos olham, tão sorridentes
e cínicos como nós.
Se mexermos na sopeira com certa convicção, pernas de
galinha virão boiando, num cemitério
aquático de dar água no céu da boca dos mais místicos. Os mais sedentos ,é
claro, poderão beber o sangue do frango ao molho pardo, já que não basta o
sangue condensado nos chouriços.
Hipocritamente me assento numa churrascaria. Bebo um chope
junto com a caipirinha e peço voluptuosamente uma picanha. Por que não um
churrasco completo? Sim, aceito. E lá vêm os cadáveres eufóricos correndo para
o meu prato: tomo a faca, empunho o garfo como um guerreiro tártaro. E como. E
rumino. E mastigo. E gosto. O sangue da vítima vai se misturando ao meu
civilizadamente. Barbaramente.
O pior antropófago é o que tem remorsos de sobremesa. Eu. E
você. Meu hipócrita leitor, meu semelhante, meu irmão.
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