Refletindo sobre a maturidade, sobre o “envelhecer”, deparei-me com um testemunho maravilhoso e super interessante
da editora e escritora ,chamada “patrona do feminismo brasileiro”, incluído no
livro “Um outro envelhecer é possível” organizado por Lucia Ribeiro.
TESTEMUNHO
(Rose Marie Murro)
A velhice é o tempo melhor de minha vida:
as melhores coisas me aconteceram depois dos 70 anos.
Mas vivo uma esquizofrenia: a cabeça está
a mil; e meu corpo, desmontando... Porque sou duas pessoas; uma é a
pessoa
física, que foi doente a vida inteira: nasci com uma doença nos olhos- miopia
progressiva e degenerativa- e tive vários problemas de saúde. Nestes últimos
anos estive três vezes em gravíssimo perigo de morte e continuo com dificuldade
para me locomover.
A outra é a pessoa psíquica;
psiquicamente eu era muito infeliz, porque não tinha consciência de que era uma
pessoa diferente. Vivia isolada e fui uma criança toda voltada para dentro;
falei com 6 meses, aos 4 anos aprendi a ler sozinha e sempre fui a primeira no colégio. Foi assim a minha vida
inteira;
Todo mundo
dizia: você não pode escrever, não pode casar. Mas me casei, tive cinco filhos
e escrevi: foi a única coisa que eu soube fazer na vida. Sempre fiz tudo
sozinha. Pouquíssimas pessoas me entenderam. Porque eu fazia tudo o que eu não
podia e acabava dando certo.
Vivi de perdas a
minha vida inteira. Só comecei a ter ganhos quando percebi que eu era uma
pessoa completamente diferente de todas as outras e rompi com todas as leis: aí
eu comecei a ganhar.
Tive cinco filhos
e com as crianças eu fui feliz. Tudo dependia de mim, meu marido gastava todo o
dinheiro e não ajudava em nada. Eu é que produzi minha própria sobrevivência, a
de meus filhos e até a de meus netos: os que eram pobres, eu eduquei.
E eles sabiam que eu era uma boa mãe, que eu
era mãe integral.
Hoje tenho 5 filhos, doze netos e três bisnetos
maravilhosos: é muita gente...E estão sempre perto de mim: uns me oferecem
apoio financeiro, outros me oferecem cuidado. Tenho uma bisneta de 6 anos-
adoro criança- e converso com ela que é uma beleza!
Sempre trabalhei- para me manter e à minha
família- e serei obrigada a trabalhar até meu último dia de vida. E o diabo é
que eu não posso mexer com o computador. É preciso que alguém digite para mim,
senão tudo se inviabiliza.
Acabo de lançar um livro: “Os avanços
tecnológicos e o futuro da humanidade”, com 356 páginas. Levei dez anos
estudando, enquanto fazia outros livros, que eram mais simples, não tinham nem
referências bibliográficas. Já , só para escrevê-lo, foram dois anos.
E tem palestras! A próxima será próxima
será sobre mulher e tecnologia, porque ninguém trabalha esse tema. E agora
surgiu o problema das moedas complementares: estou me dedicando a essa moeda
feminina e vendo a economia do ponto de vista das mulheres.
Fui casada, me separei, tive muitos
namorados. Agora estou vivendo com um companheiro 40 anos mais novo que eu.
Essa relação se iniciou quando eu já tinha 70 e tantos anos; e foi por causa da
Marguerite Duras que eu o aceitei, porque ela também viveu com um homem mais
jovem e deu certo. Já faz 7 anos que a gente está junto. Ele mora em São Paulo;
e eu, no Rio de Janeiro: não posso ter ninguém perto de mim. Nem ele. E eu
sempre querendo acabar a relação- 40 anos de diferença!-, mas sempre seguimos
em frente... Isso porque senti que ele era diferente. Agora a gente não pode
mais ter transa física , porque minha saúde não permite. Mas a qualidade do
amor é superior: é muito mais uma doação. E só com ele tomei consciência
realmente de que ninguém é igual a mim. Aí então consegui entender minha vida.
Norberto Bobbio, la vechiaia É uma merda...
Mas nunca senti realmente isso porque
vivo com a cabeça em outras coisas, na construção do futuro: eu sempre estou na
ponta de meu tempo. Minha idade real sempre passou despercebida. Eu acho que
velhice existe é na cabeça.
Pintei os cabelos, porque estava sempre
na televisão. E quando você está na mídia e tem cabelo branco, é sinal de que
está declinando. Homem pode ter cabelo branco- porque é sábio- mulher, não!
Então, resolvi: não vou fazer nenhuma plástica, mas vou pintar os cabelos,
porque isso tem uma função. Se eu fosse casada, como minha irmã, com um
companheiro de 50 anos... Se eu tirar a pintura do cabelo, acho que ficará
branquinho; e quando eu estiver muito velha, vou pintar meus cabelos da cor do
arco-íris, desde o vermelho até roxo...
Velhice eu não sei o que é, nunca pensei
nela. O que existe na vida é maturidade. Cara, eu me sinto com 15 anos, que
negócio é esse de ser velha? Mas se eu não fosse velha, não entenderia nada: a
realidade humana é muito mais profunda do que esta porcaria que a gente vive.
A finitude começou a me perseguir faz uns
15 dias, porque vou fazer 80 anos.
Quando eu era criança, a mulher de 40
anos já ficava fazendo companhia aos gatos e já era avó, não tinha nada o que
fazer. Depois eram as mulheres de 50 , 60 anos, é que eram velhas; e até os 70
ainda era possível. Quando completei 70 anos, fiz três festas, em São Paulo, no
Rio e em Brasília.
Agora que eu vou fazer 80, de repente eu
me dei conta de que estou á beira de um
abismo: você tem que morrer !Porque para mim 80 anos nunca existiram. Antes eu
ignorava a velhice. Não existia. Estava tão ocupada com outras coisas, que nem
via, nem percebia.
Ainda estou acabando de “engolir” meus 80
anos. Vou fazer uma festa de 81-80 não, porque é muito convencional; vai ser
uma festa de 81, porque oito mais um é nove, e noves fora zero: e aí começa tudo
de novo. Vai ser chamada “ a festa do tombamento”. Aí eu viro um monumento
nacional tombado...
Acho que estou conseguindo aceitar a
finitude. Tomei as rédeas nas mãos. Ela não me assusta mais como um monstro.
Não se pode negar a realidade, negar para que?
Às vezes me sinto uma mulher em declínio.
Mas outras vezes acho que sou eterna. Parece que tenho 15, 20,30,50,60,80 anos:
tudo junto. Porque todos nós temos a semente dessa eternidade.
Vivo o dia a dia, seja o que for. Passou
um dia, eu já fico feliz. Mas eu acho que assumi plenamente a finitude: estou
muito curiosa para ver o que há depois da vida... Se não tiver nada, ótimo
também, porque eu fiz tudo o que queria.
Nenhum comentário:
Postar um comentário