Dentre as crônicas de amor e outros afetos, do escritor Affonso Romano de Sant'Anna, escolhi uma das mais lindas para mostrar a vocês. Como esse autor escreve,meu Deus!!!
Que presente te darei, eu que tanto quero e pouco dou, porque
mesquinho, egoísta, distraído não te cumulo daquilo que deveria cumular?
Deveria desatar inúmeros presentes ao pé da
árvore, entreabrindo jóias, tecidos, requintados e pessoais objetos,
ou deveria dar-te o que não posso buscar lá fora, mas o que em mim está fechado
e mal sei desembrulhar?
Gostaria de dar-te coisas naturais, feitas com a mão, como
fazem os camponeses, os artesãos, como faz a mulher que ama e prepara o
Natal com seus dedos e receitas, adornos e atenção.
Te dar, talvez, um pedaço de praia primitiva, como aquelas
do Nordeste, ou de antigamente- Búzios e Cabo Frio; um pedaço de mar
das Ilhas do Caribe, onde a água e o amor são transparentes e onde a areia é
fina e brilhante e, sozinhos, habitam a eternidade, os amantes.
Te dar aquele verso de canção um dia ouvida não sei mais aonde,
se numa tarde de chuva, se entre os lençóis cansados; um
verso,
uma canção ou talvez o puro som de um saxofone ao
fim do dia,
som que tem qualquer coisa de promessa e melancolia.
Fugir uma tarde contigo para os motéis, quando todos os homens
se perdem nos papéis e escritórios, números e tensões; fugir contigo para uma
tarde assim, um espaço de amor entreaberto na peça que nos prega a burocracia
dos gestos.
Gravar numa fita as canções que me fazem lembrar de ti e
ouví-las, ou tocar de algum modo, em algum cassete as frases que disseste, que
em mim gravaste: frases líricas, precisas, que quando estou cinza, relembro e
me iluminam.
Te enviar todos os cartões que colecionas, de todos os lugares
que conheço ou que tu nem imaginas, ir a essas paisagens e ilhas e
habitá-las com os selos e palavras de intermitente paixão.
Dar-te aquela casa de campo entre montanhas, aquele amor entre a
neblina, aquele espaço fora do mundo, fora de outros espaços, sem telefone, sem
estranhas ligações, para ali nos ligarmos um no outro em
una e dupla solidão.
Se queres jóias, te
darei. Aqueles corais que vendem na Ponte Vecchia, em Florença; o âmbar ou as
pérolas que expõem nas lojas do Havaí; aquelas pedras de vidro para
iridescentes colares, que vendem em Atenas, ao pé da Plaka, ao pé da Acrópole,
que amorosa nos contempla.
Te dar numa viagem os castelos do Loire, e sair comendo e rindo
juntos no roteiro gastronômico franco-italiano; ali comendo e aqueles vinhos
bebendo, de tudo nos esquecendo, sobretudo dos remorsos tropicais
de quem tem sempre ao lado um faminto desamparado, de culpa nos
ferindo.
Te darei flores. Sempre planejei fazer isto.
Tão simples: de manhã acordar displicente e começar a colher
flores sob a cama.
Ir tirando buquês de rosas,
margaridas, vasos de íris, orquídeas
que estão desabrochando e, uma a uma, de flores ir te
cumulando.
E amanhecendo dirás: o amado hoje está doce, seu amor aflorou e está perfumado.
Escrever bilhetes pela casa inteira, metê-los entre as roupas,
armários, prateleiras, pra que na minha ausência comeces a desdobrar
recados daquele que nunca se ausentou, embora esse ar de quem vive partindo,
mas, se alguma vez partiu ,partido foi para reunido regressar.
Te dar um gesto simples. Passar a mão de repente sobre tua
mão,
como se apalpa a vida ou fruto que pede para ser colhido.
Te dar um olhar, não aquele olhar distraído, alienado de quem
está
nas coisas prosaícas perdido, mas um olhar de quem chegou
inteiro
e que se entrega enternecido e desamparado dizendo:
olha, sou
teu, agora veja lá o que vai fazer
comigo!
Realmente lindo , o mundo de hoje com a correria não estamos preparados para um texto tão profundo e lindo
ResponderExcluirDizem que verdadeiros poetas são inspirados por amarem demais, talvez em algum momento da vida nós falte só papel e caneta no momento certo!
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