quarta-feira, 23 de outubro de 2024

SAUDOSA MALOCA

                                               

                                  SAUDOSA MALOCA


 

Resolvi contar para vocês como foi a passagem da nossa família pela saudosa maloca.

Digo  maloca porque, quando nos mudamos de lá, quando eu ia visitar os amigos, eles cantavam para mim:"Saudosa maloca, maloca querida....”

  
                                      Rua Aimorés e as casas da época , nos anos 1955/1960

Depois dos meus pais terem morado numa espécie de pensão de um português, mudamos para um casarão antigo na Rua Aimorés, Bom-Retiro. Era um casarão com vários quartos, um banheiro coletivo, um quintal central. Nos fundos , lembro-me de uns tanques para lavar roupas.

Cada quarto era habitado por uma família ou em casal.

Eu tinha uns 3 anos quando fomos morar lá. Para uma criança era tudo lindo. Tinha as outras crianças para brincar. Na época eu era filha única de imigrantes lutando para sobreviver num país estrangeiro.

Nosso quarto era no fundo e era melhorzinho porque tinha uma escada . Sob a escada, minha mãe cozinhava numa espiriteira . Em cima era tudo junto. Minha caminha, a dos meus pais, um guarda-comidas e louças.

Aos poucos, eles foram os primeiros a comprar geladeira, sofá- cama e uma televisão. Meu pai trazia discos 78 rotações e depois long plays ( valsas, tangos, ...) e colocava na vitrola que era seu xodó. Tinha um acordeon e tocava de ouvido.

Lembro-me de algumas pessoas que lá moravam. No primeiro quarto , à direita, morava o Sr. Elias, um alfaiate boa gente, sua esposa e a filha Glória , que era minha amiguinha.

No quarto à esquerda morava a Tessília e seu amásio, um moço bem mais novo que hoje concluo ser sustentado por ela. Era um abusador de nós crianças. Fingia que nos abraçava para nos bolinar. Só depois de muitos anos  percebi o “safado “ que ele era.

Depois, à direita , tinha o quarto do casal, Merentina e seu jovem marido José. Eu amava o casal e ia sempre visita-los para ganhar azeitonas verdes que eles guardavam num pote grande. À esquerda vinha o quarto da vovó! Era uma idosa, provavelmente da família dos proprietários, pouco enxergava e todos ajudávamos. Ela cozinhava num fogão à lenha.

Ficou uma imagem do dia em que virou uma panela de água fervendo nela . Minha mãe passando nela uma pomada amarelinha para queimaduras , nunca me saiu da memória.

Minha mãe tinha sido enfermeira no final da guerra e não temia nada. Ela sempre socorria quem precisava, dava injeções, se aplicava sozinha quando precisava também.

Mais no fundo, depois do nosso quarto, havia um quarto que minha mãe logo alugou e começou a costurar para fora, para as confecções de roupas do bairro. Havia suas máquinas e uma mesa de corte. Enquanto minha mãe passava noites inteiras costurando, eu adormecia embaixo da mesa de corte.

Meu pai, que era um respeitado tenente na Grécia, teve que começar a vida e consertava máquinas de costura em domicílio, de dia. Muitas vezes me levava com ele. Era divertido irmos de trem para os subúrbios. Muitas senhoras me tratavam bem, me serviam alguma guloseima.

À noite , para aumentar a renda, ele dormia na empresa para qual prestava serviços de técnico, no papel de guarda- noturno. Era a loja chamada Irmãos Vitale. Muitas noites, minha mãe preparava comida para o meu pai e íamos levar o jantar para ele. Essa união que os salvava de tantas agruras.

No fundão à direita morava a Odete que tinha um amante , quarda civil , João, e uma filha Zuleika, minha amiga e inimiga porque, vira e mexe nos pegávamos. Me vem à mente o dia em que ela me tacou um banquinho de madeira na cabeça e eu revidei com outro nela. Ficou a imagem da mãe dela e da minha lavando nossas cabeças nos tanques ao mesmo tempo. Fazíamos bolinhas de sabão  batendo sabão com água numa lata. Brincávamos na calçada de queimada, corda, bolinhas de gude, esconde-esconde etc.

Eu fui filha única até os 7 anos e queria muito ter irmãos. Eu me achava importante quando dizia aos amigos “Venham irmãos”. Queria que todos pensassem que eu tinha irmãos.

Havia o quarto de 2 irmãos gregos que se tornaram grandes amigos dos meus pais( Leonidas e Sotiris). Minha mãe se condoía com a solidão deles e os chamava para dividir suas comidas deliciosas.

O Sotiris, até hoje me emociona quando conta essas histórias e fala da sua gratidão à meu pai e minha mãe a qual chama de “FERA”. Era a fortaleza em pessoa.

No fundão à esquerda, ficava o banheiro mal cheiroso. Minha mãe me dava banho em casa numa bacia de alumínio e eu tinha um penico com “decalcomania” e tudo.Decalcomania( uma espécie de adesivos que eram descolados com água e colados depois onde desejássemos).

O João, pai da Zuleika também era um abusador. Hoje sinto nojo quando me lembro das brincadeiras dele. Colocava o isqueiro no bolso e pedia para a filha e para mim acharmos.

Vocês entenderam a safadeza dele. Pena que na época eu não percebia, do contrário, se minha mãe soubesse, acabaria com ele, literalmente.

Nas brincadeiras de rua, corríamos até a venda do Sr. Humberto, um carequinha simpático e comprávamos, maria-mole, balas, chicletes. Havia uma caderneta onde ele marcava o que eu pegasse e minha mãe pagava depois.

Aos poucos minha mãe foi prosperando e alugou mais um quarto onde colocou máquinas e empregou costureiras. Tinha espírito empreendedor.

Um dia, um vizinho judeu, para quem minha mãe costurava, chegou até ela e disse que ela deveria mudar para uma sala grande. Aqueles espaços não eram mais suficientes.

Minha mãe argumentou que não teria condições de arcar com um aluguel alto.  Ele, porém, sabendo da garra dela e do meu pai, ofereceu-se para ser o fiador. Assim foi feito e a confecção dos meus pais começou no segundo andar de um prediozinho da Rua Aimorés, perto de casa. Puseram o nome de TACIA (meu nome).

Dessa forma foram crescendo, alugaram outra sala e daí em diante houve muita luta, muitos tombos, tropeços mas foram vitoriosos. Minha mãe continuou com a confecção e sua loja e meu pai abriu uma metalúrgica que prosperou.

Mudamos para um apartamento confortável na Rua José Paulino, que para mim, era um palácio.

Isso se deu quando meu irmão nasceu. Eu já tinha 7 anos. Ele chegou em dias melhores.

Mesmo com muita dificuldade, meus pais me matricularam na melhor escola de freiras, Colégio de Santa Inês, na Rua Três Rios. É um colégio salesiano que existe até hoje. Tive uma ótima formação e agradeço muito a meus pais.

O meu pai, como tinha estudado mais , me auxiliava nas tarefas, ia às reuniões escolares e cuidava do meu lado intelectual.

Minha mãe ,guerreira ,cuidava da parte prática. Fazia-me roupas lindas e cuidava de tudo em casa até conseguir uma auxiliar pois trabalhava o dia todo.

Em cada aniversário, eu ganhava um lindo vestido, sapatinhos, meias,luvas, bolsinha, fita linda nos cabelos. Minha mãe me enfeitava, colocava minhas joinhas e íamos com meu pai ao fotógrafo tirar a foto do ano.







Eu e meu irmão Georgios

Difícil eu relatar tudo isso sem me emocionar muito e agradecer aos meus pais por terem me dado estrutura forte para seguir a vida mesmo após terem partido.
                                        


                      Ficaram lindas memórias e uma saudade infinita.